Sampaulo está morto há exatos dez anos. Com ele convivi e fomos amigos durante
43 anos. Encontramo–nos pela primeira vez em 1956, na redação do jornal "a Hora" (assim mesmo, com o “a” minúsculo), onde ele desempenhava o duplo papel de
chargista e diagramador.
Na imprensa daquela época, pelo menos no Rio Grande do
Sul, considerava–se o humor atividade diletante. As empresas não admitiam pagar "só por aquilo”. Não tinham consciência do conteúdo social e político das
piadas e dos desenhos e o quanto atraíam os leitores.
Tinha sido assim com o Zeca Sampaio, irmão do Sampa, que arrancou gargalhadas
com o homenzinho mijão da Revista do Globo, mas preferiu ser funcionário da
Justiça Eleitoral, para garantir o pão de cada dia; com o Saul Silva, o Mr.
Ioso, da antiga Folha Esportiva, que voltou para a cidade do Rio Grande, e tornou
desenhista de publicidade; com o João Bergman, que encontrava o lado engraçado
de todas as coisas em "O domingo
é meu", mas tinha de ser repórter e redator; com o Carlos Reverbel e o Carlos
Raphael Guimaraens, que apesar das suas crônicas primorosas, tinham também que ser editorialistas.
Lembro bem deste primeiro encontro com Sampaulo. Eu morava em Rio Grande, dividia
minha vida entre um consultório dentário e a sucursal de "a Hora", seguindo a
compulsão profissional com a qual nasci. Tinha vindo a Porto Alegre para trazer
uma reportagem sobre a universidade que se pretendia erigir na minha cidade – é
a FURG, hoje - e me coube trabalhar com ele, para confeccionar títulos,
cartolas e legendas.
Como estávamos na idade de reformar o mundo, ele tinha 25 anos, eu 28 – aliás,
jamais deixamos de reformar o mundo apesar do tempo decorrido, e acho que esse
é o segredo da nossa sobrevivência – adivinhávamos que aquele jornal não teria
longa vida. E fomos filosofar na mesa do bar mais próximo, na avenida São
Pedro, onde nos identificamos pelo amor à profissão e pela identidade da visão
política.
Aquela conversa jamais terminou. Foi continuada sempre, quer estivéssemos
trabalhando no mesmo veículo ou não. Frequentávamos os mesmos ambientes, desde
a famosa “mesa da diretoria” do restaurante Dona Maria ao bar da Associação Rio
Grande de Imprensa, que ele frequentou religiosamente aos sábados de manhã, até
adoecer. Lá deixou também o registro do seu talento, fazendo rir seus colegas,
entre eles particularmente o jornalista Alberto André, presidente da entidade,
a quem presenteava com uma caricatura nos aniversários redondos – 50 anos, 60
anos. Essas caricaturas estão lá, emolduradas e integram o patrimônio da
entidade.
Encontrávamo–nos também, na cerimônia de entrega dos Prêmios ARI de Jornalismo.
Durante os 40 anos em que o concurso tem sido realizado, o SamPaulo foi
primeiro lugar em 20 deles. E sempre que também me tocava uma premiação, ele
tinha uma frase característica – Estamos aí. A frase fora herdada da amizade
com o Agenor, adolescente que fora contínuo do velho Diário de Notícia.
O Agenor ganhava salário mínimo, o Diário atrasava sempre o pagamento, mas ele,
como o Sampaulo, não reclamava de nada. Quando lhe perguntavam como andavam as
coisas, o Agenor respondia – “Estamos aí!”. A frase apaixonou o Sampaulo, que
inclusive a tornou nome de uma seção que fez para a Folha da Tarde. E sempre
que desejava comemorar o que fosse, falava – "Estamos aí."
Uma vez tentei entrevistar o Sampaulo. Era fevereiro, véspera do dia de Nossa
Senhora dos Navegantes, nos cinemas, fazendo furor, o filme Tubarão. Acabou não
saindo entrevista alguma, ele fez na hora uma charge, me deu o original de
presente.
Tentei fazê-lo falar sobre o seu processo de criação. Ele tinha acabado de
ganhar um prêmio, pela primeira vez, no Salão Internacional do Canadá, com uma
charge sobre a criação do mundo: Adão e Eva atrás de um arbusto, perplexos,
vendo sair da “máquina de fazer vida”, bichos estranhos como o camelo, o
rinoceronte, o hipopótamo. Adão comenta: “O ‘Velho” não está nos dias dele”.
Perguntei como percebia este lado tão engraçado das coisas. Lembro–me de ter
falado no Papa João 23, também humorista, que liquidou a malquerença do cardeal
Tardini com uma piada. Tardini sempre se referia a ele como “aquele lá de
cima”, apontando o 2º andar onde o Papa tinha seus aposentos privados. João 23
chamou Tardini e lhe disse: “Aquele lá de cima é nosso amado Senhor. Eu sou
apenas aquele lá do segundo andar.”
Chegou–se à conclusão de que o humor nasceu na primeira cirurgia, quando o
”Lá-de-cima” esculpiu a mulher de uma das costela de Adão. Sampaulo me disse
que este hipotético flagrante poderia ser criado de várias maneiras. Bastaria
desenhar uma mulher sedutora e pôr expressão admirativa em Adão olhando para
cima, com a legenda, “Quem sabe, sabe”, se o chargista estivesse de bom humor.
Ou então, se estivesse de mau humor, mudar a legenda para “Precisava
complicar?”.
Não precisava, não. Bastava não deixar morrer gente como o Sampaulo.