Em homenagem ao SamPaulo, o Sampa, o Paulo, o meu Tio Paulo, um belo texto de Jayme Copstein escrito em 13 de setembro de 2009.
Sampaulo está morto há exatos dez anos. Com ele convivi e fomos amigos durante
43 anos. Encontramo–nos pela primeira vez em 1956, na redação do jornal "a Hora" (assim mesmo, com o “a” minúsculo), onde ele desempenhava o duplo papel de
chargista e diagramador.
Na imprensa daquela época, pelo menos no Rio Grande do
Sul, considerava–se o humor atividade diletante. As empresas não admitiam pagar "só por aquilo”. Não tinham consciência do conteúdo social e político das
piadas e dos desenhos e o quanto atraíam os leitores.
Tinha sido assim com o Zeca Sampaio, irmão do Sampa, que arrancou gargalhadas
com o homenzinho mijão da Revista do Globo, mas preferiu ser funcionário da
Justiça Eleitoral, para garantir o pão de cada dia; com o Saul Silva, o Mr.
Ioso, da antiga Folha Esportiva, que voltou para a cidade do Rio Grande, e tornou
desenhista de publicidade; com o João Bergman, que encontrava o lado engraçado
de todas as coisas em "O domingo
é meu", mas tinha de ser repórter e redator; com o Carlos Reverbel e o Carlos
Raphael Guimaraens, que apesar das suas crônicas primorosas, tinham também que ser editorialistas.
Lembro bem deste primeiro encontro com Sampaulo. Eu morava em Rio Grande , dividia
minha vida entre um consultório dentário e a sucursal de "a Hora", seguindo a
compulsão profissional com a qual nasci. Tinha vindo a Porto Alegre para trazer
uma reportagem sobre a universidade que se pretendia erigir na minha cidade – é
a FURG, hoje - e me coube trabalhar com ele, para confeccionar títulos,
cartolas e legendas.
Como estávamos na idade de reformar o mundo, ele tinha 25 anos, eu 28 – aliás,
jamais deixamos de reformar o mundo apesar do tempo decorrido, e acho que esse
é o segredo da nossa sobrevivência – adivinhávamos que aquele jornal não teria
longa vida. E fomos filosofar na mesa do bar mais próximo, na avenida São
Pedro, onde nos identificamos pelo amor à profissão e pela identidade da visão
política.
Aquela conversa jamais terminou. Foi continuada sempre, quer estivéssemos
trabalhando no mesmo veículo ou não. Frequentávamos os mesmos ambientes, desde
a famosa “mesa da diretoria” do restaurante Dona Maria ao bar da Associação Rio
Grande de Imprensa, que ele frequentou religiosamente aos sábados de manhã, até
adoecer. Lá deixou também o registro do seu talento, fazendo rir seus colegas,
entre eles particularmente o jornalista Alberto André, presidente da entidade,
a quem presenteava com uma caricatura nos aniversários redondos – 50 anos, 60
anos. Essas caricaturas estão lá, emolduradas e integram o patrimônio da
entidade.
Encontrávamo–nos também, na cerimônia de entrega dos Prêmios ARI de Jornalismo.
Durante os 40 anos em que o concurso tem sido realizado, o SamPaulo foi
primeiro lugar em 20 deles. E sempre que também me tocava uma premiação, ele
tinha uma frase característica – Estamos aí. A frase fora herdada da amizade
com o Agenor, adolescente que fora contínuo do velho Diário de Notícia.
O Agenor ganhava salário mínimo, o Diário atrasava sempre o pagamento, mas ele,
como o Sampaulo, não reclamava de nada. Quando lhe perguntavam como andavam as
coisas, o Agenor respondia – “Estamos aí!”. A frase apaixonou o Sampaulo, que
inclusive a tornou nome de uma seção que fez para a Folha da Tarde. E sempre
que desejava comemorar o que fosse, falava – "Estamos aí."
Uma vez tentei entrevistar o Sampaulo. Era fevereiro, véspera do dia de Nossa
Senhora dos Navegantes, nos cinemas, fazendo furor, o filme Tubarão. Acabou não
saindo entrevista alguma, ele fez na hora uma charge, me deu o original de
presente.
Tentei fazê-lo falar sobre o seu processo de criação. Ele tinha acabado de
ganhar um prêmio, pela primeira vez, no Salão Internacional do Canadá, com uma
charge sobre a criação do mundo: Adão e Eva atrás de um arbusto, perplexos,
vendo sair da “máquina de fazer vida”, bichos estranhos como o camelo, o
rinoceronte, o hipopótamo. Adão comenta: “O ‘Velho” não está nos dias dele”.
Perguntei como percebia este lado tão engraçado das coisas. Lembro–me de ter
falado no Papa João 23, também humorista, que liquidou a malquerença do cardeal
Tardini com uma piada. Tardini sempre se referia a ele como “aquele lá de
cima”, apontando o 2º andar onde o Papa tinha seus aposentos privados. João 23
chamou Tardini e lhe disse: “Aquele lá de cima é nosso amado Senhor. Eu sou
apenas aquele lá do segundo andar.”
Chegou–se à conclusão de que o humor nasceu na primeira cirurgia, quando o
”Lá-de-cima” esculpiu a mulher de uma das costela de Adão. Sampaulo me disse
que este hipotético flagrante poderia ser criado de várias maneiras. Bastaria
desenhar uma mulher sedutora e pôr expressão admirativa em Adão olhando para
cima, com a legenda, “Quem sabe, sabe”, se o chargista estivesse de bom humor.
Ou então, se estivesse de mau humor, mudar a legenda para “Precisava
complicar?”.
Não precisava, não. Bastava não deixar morrer gente como o Sampaulo.
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