O texto abaixo foi escrito
pelo jornalista Jayme Copstein em 7 de setembro de 2009 e publicado no site Coletiva.net:
SamPaulo está morto há exatos dez anos. Com ele convivi e
fomos amigos durante 43 anos. Encontramo–nos pela primeira vez em 1956, na
redação do jornal a Hora (assim mesmo, com o “a” minúsculo), onde ele
desempenhava o duplo papel de chargista e diagramador. Na imprensa daquela
época, pelo menos no Rio Grande do Sul, considerava–se o humor atividade
diletante. As empresas não admitiam pagar só “por aquilo”. Não tinham
consciência do conteúdo social e político das piadas e dos desenhos e o quanto
atraíam os leitores.
Tinha sido assim com o Zeca Sampaio, irmão do Sampa, que
arrancou gargalhadas com o homenzinho mijão da Revista do Globo, mas preferiu
ser funcionário da Justiça Eleitoral, para garantir o pão de cada dia; com o
Saul Silva, o Mr. Ioso, trabalhar com ele, para
confeccionar títulos, cartolas e legendas.
Como estávamos na idade de reformar o mundo, ele tinha 25
anos, eu 28 – aliás, jamais deixamos de reformar o mundo apesar do tempo
decorrido, e acho que esse é o segredo da nossa sobrevivência – adivinhávamos
que aquele jornal não teria longa vida. E fomos filosofar na mesa do bar mais
próximo, na avenida São Pedro, onde nos identificamos pelo amor à profissão e
pela identidade da visão política.
Aquela conversa jamais terminou. Foi continuada sempre, quer
estivéssemos trabalhando no mesmo veículo ou não. Frequentávamos os mesmos
ambientes, desde a famosa “mesa da diretoria” do restaurante Dona Maria ao bar
da Associação Riograndense de Imprensa, que ele frequentou religiosamente aos
sábados de manhã, até adoecer. Lá deixou também o registro do seu talento, fazendo
rir seus colegas, entre eles particularmente o jornalista Alberto André,
presidente da entidade, a quem presenteava com uma caricatura nos aniversários
redondos – 50 anos, 60 anos. Essas caricaturas estão lá, emolduradas, e
integram o patrimônio da entidade.
Encontrávamo–nos também, na cerimônia de entrega dos Prêmios
ARI de Jornalismo. Durante os 40 anos em que o concurso tem sido realizado, o
SamPaulo foi primeiro lugar em 20 deles. E sempre que também me tocava uma
premiação, ele tinha uma frase característica – Estamos aí. A frase fora
herdada da amizade com o Agenor, adolescente que fora contínuo do velho Diário
de Notícia.
O Agenor ganhava salário mínimo, o Diário atrasava sempre o
pagamento, mas ele, como o SamPaulo, não reclamava de nada. Quando lhe
perguntavam como andavam as coisas, o Agenor respondia – “Estamos aí!”. A frase
apaixonou o SamPaulo, que inclusive a tornou nome de uma seção que fez para a
Folha da Tarde. E sempre que desejava comemorar o que fosse, falava –
"Estamos aí."
Uma vez tentei entrevistar o SamPaulo. Era fevereiro,
véspera do dia de Nossa Senhora dos Navegantes, nos cinemas, fazendo furor, o
filme Tubarão. Acabou não saindo entrevista alguma, ele fez na hora uma charge,
me deu o original de presente.
Tentei fazê-lo falar sobre o seu processo de criação. Ele
tinha acabado de ganhar prêmio, pela primeira vez, no Salão Internacional do
Canadá, com uma charge sobre a criação do mundo: Adão e Eva atrás de um
arbusto, perplexos, vendo sair da “máquina de fazer vida”, bichos estranhos
como o camelo, o rinoceronte, o hipopótamo. Adão comenta: “O ‘Velho’ não está
nos dias dele”.
Perguntei como percebia este lado tão engraçado das coisas.
Lembro–me de ter falado no Papa João 23, também humorista, que liquidou a
malquerença do cardeal Tardini com uma piada. Tardini sempre se referia a ele
como “aquele lá de cima”, apontando o 2º andar onde o Papa tinha seus aposentos
privados. João 23 chamou Tardini e lhe disse: “Aquele lá de cima é nosso amado
Senhor. Eu sou apenas aquele lá do segundo andar”.
Chegou–se à conclusão de que o humor nasceu na primeira
cirurgia, quando o ”Lá-de-cima” esculpiu a mulher de uma das costela de Adão.
SamPaulo me disse que este hipotético flagrante poderia ser criado de várias
maneiras. Bastaria desenhar uma mulher sedutora e pôr expressão admirativa em
Adão olhando para cima, com a legenda “Quem sabe, sabe”, se o chargista
estivesse de bom humor. Ou então, se estivesse de mau humor, mudar a legenda
para “Precisava complicar?”.
Não precisava, não. Bastava não deixar morrer gente como o
SamPaulo.
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